Eleições e a saúde emocional das crianças.

ELEIÇÕES E A SAÚDE EMOCIONAL DAS CRIANÇAS

O ano era 1984, eu tinha 8 anos. De um telefone beje de disco do qual me lembro o número até hoje, minha mãe e meu tio travavam uma conversa catastrófica sobre o fim do mundo. Meu tio havia assistido a um documentário sobre as previsões do astrólogo e vidente francês do século XVI conhecido como Nostradamus e estava convencido de que o mundo não passaria do ano 2000. Certo de que estava ajudando a família, resolveu ligar para minha mãe e discutir o assunto. Eu, brincando na sala, ouvia as falas e observava os gestos da minha mãe. Ela parecia mesmo preocupada. 

Nunca me esqueci de algumas frases. “Tadinhas das crianças né, tão jovens ainda. A Denise vai ter o que, vinte e poucos anos? Que judiação.”

Ainda que não tenha acontecido exatamente assim ou que eles sequer se lembrem dessa conversa, foi assim que eu ouvi aos 8 anos de idade e foi essa a memória que me marcou naquele momento. Uma singela prova de que não temos qualquer controle de como as experiências afetam as crianças. 

Escrevendo essas palavras revivo o aperto no peito, coração acelerado e o medo imenso que tomou conta de mim naquele momento. Meu Deus, então era verdade! O mundo acabaria no ano 2000 e pelo jeito sofreríamos muito no processo. Para mim o ano 2000 era algo inconcebivelmente distante, mas a preocupação dos adultos me sinalizava que eu também precisava me preocupar. 

Minha imaginação foi a mil e então fiz o que quase toda criança faz quando se sente apavorada e não tem repertório emocional para lidar com os sentimentos, nem quer preocupar os pais. Me calei. Evitei o assunto o máximo que pude, engoli o choro e fingi que o medo não existia. Naquela época havia pouco espaço, voz ou interesse no desenvolvimento emocional infantil. Ainda menos do que hoje. 

Durante anos aquela conversa me revisitou. Com o tempo, as probabilidades de fim de mundo foram dando lugar a perspectivas mais palpáveis de futuro, mas uma pequena desconfiança sempre existiu. Hoje sorrio quando me lembro que só no Réveillon da virada do milênio, aos quase 24 anos de idade, enfim superei o trauma daquela conversa.

Crianças são literais. Têm pouca ou nenhuma noção de tempo, são pouco capazes de fazer planos consistentes ou entender as consequências do resultado de uma eleição. Checam a segurança do mundo pelos olhos e atitudes dos pais.  E isso não se restringe a primeira infância. Adolescentes também se perdem nessas questões e precisam dos adultos para nortear seus planos, ações e emoções. Os comportamentos dos adultos, em geral pautados em suas crenças e justificados por seus valores, estão servindo de exemplo para a próxima geração, nossa real e única chance de um futuro do qual poderemos nos orgulhar, ou não. 

Nós, os adultos da relação, já deveríamos saber que tudo o que temos como verdade absoluta não passa de nosso ponto de vista. A essa altura já deveríamos saber que conviver com opiniões contrárias beneficia a todos e tolerá-las é o único caminho de ensinar tolerância. Entretanto, nas últimas semanas retrocedemos. Temos vivido uma guerra fria de insultos e catastrofismo, ofensas e negatividade, agressões e intransigência que estão afetando a infância. E quando a infância é afetada as consequências são incontroláveis. 

De repente defender um lado se equiparou a atacar o outro. As pessoas levantam voz, ruborizam, batem na mesa, xingam e tudo isso na frente dos filhos. Quando percebem o óbvio – que o outro não vai mudar de ideia – partem para a comunicação violenta sem hesitar. Mas se uma criança repete esse comportamento na escola o que acontece? No melhor das hipóteses é advertida e encaminhada para avaliação psicológica ou neurológica. Mais justo seria uma avalição de seus modelos.

Os grupos de WhatsApp, dos quais escolhemos participar por motivos afetivos, se tornaram ringues virtuais, negando a qualquer um o direito de evitar o assunto em prol da sua saúde mental. Adultos irritados com discussões digitais levam a irritação para a relação com os filhos, cônjuges, colegas de trabalho generalizando o stress e a ansiedade. 

Presenciei um pai proferindo as piores previsões para o país caso seu candidato não vença as eleições. Seu filho de 6 anos ouvia de olhos arregalados, como eu com medo do fim do mundo nos anos 80. Não temos ideia de como esse pequeno ouviu tudo aquilo e de quais aflições vão afetá-lo. Provável que nada de positivo tenha sido aprendido naqueles minutos preciosos em família. Pelo contrário.

A maneira como lutamos é mais importante do que aquilo pelo qual lutamos. Os meios são os fins. Por mais nobre que seja sua causa, por mais que você se considere certo, causar mal-estar, violência ou sofrimento, machuca o outro e machuca você mesmo.

Nas próximas semanas os futuros adultos podem aprender muito sobre tolerância, respeito e diversidade de opiniões. Mas isso depende do que nós adultos faremos com essa oportunidade.

Destacar o lado positivo de nossa decisão, ao invés de tentar destruir a outra opção, é um plano sensato e promissor. Chamá-los para uma viagem pela História do país e do mundo, mostrando que nem sempre tivemos direito de escolha e alguns países não têm até hoje, já é um ensinamento incrível. Valorizar o direito ao voto e exercer esse direito com a relevância que ele merece, pode gerar memórias poderosas que ecoarão por décadas. 

Dar voz aos pequenos, acolher suas dúvidas e medos pode abrir caminho para a construção de suas próprias ideias e opiniões, além de prevenir muito sofrimento. Estabelecer conversas saudáveis e respeitosas sobre política, ensina as crianças a entenderem como se comunicar em seus ambientes coletivos, como evitar discussões tóxicas e assim perceber caso venham a ser vítimas de intolerância ou desrespeito. Ensiná-los que nem todos desejam ser interlocutores quando o assunto é política é o primeiro passo para um futuro físico e virtual menos tóxico.

Mas existe um aprendizado primordial para as crianças nessas eleições. 

Somos seres sociais.  Por isso é essencial entender que nossa liberdade está sempre entrelaçada à do outro. Foi nessa interdependência que chegamos até aqui e é nela que continuaremos seguindo em frente. Portanto ajudar as crianças a se sentirem seguras enquanto aprendem a viver socialmente, deveria ser um compromisso de todos nós. Sentindo-se seguras e apoiadas, elas podem encontrar caminhos para desenvolver seus próprios meios de enfrentar o que quer que o futuro lhes reserve.

Com ou sem mensagem profética de fim de mundo, com ou sem o resultado eleitoral desejado, nada é mais importante para o futuro das crianças do que um presente de respeito, afeto e amor. Minar a esperança das crianças e enchê-las de angústia e temor nunca deveria ser estratégia para nada. 

Confira o último texto da coluna do Instituto Primordial: A INFÂNCIA, O ÁLBUM DA COPA E A ESCOLA DE APOSTAS