A INFÂNCIA, O ÁLBUM DA COPA E A ESCOLA DE APOSTAS.

Você paga e torce para vir o personagem raro, a figurinha brilhante, o bonequinho que falta pra completar a coleção ou o jogador que a criança mais almeja no jogo on-line. Se o desejo for atendido – o que raramente acontece – o curto prazer logo dá lugar a outro desejo amarrado à magia da sorte e mediado pelo comportamento de compra dos pais. Se o desejo não for atendido, por que não tentar de novo e de novo e só mais uma vez? Quem sabe agora daremos sorte?

Como se não bastasse, inúmeros produtos desejados pelas crianças são pareados com alimentos que serão consumidos por elas. Alimentos cuja qualidade beira um abismo nutricional, mas que agradam seus cérebros em intensidades sem precedentes. A experiência alimentar altamente prazerosa se torna por si mais um objeto de desejo rapidamente aprendido e insistentemente perseguido pelas crianças a partir do segundo em que são expostas.

Muitos personagens de animações, penduricalhos, brindes e agora algumas das tão amadas figurinhas da Copa do Mundo 2022, só podem ser obtidos mediante compra de produtos ultraprocessados que entram na vida das crianças e suas famílias por essa via torta afetando a infância em quase todos os seus pilares primordiais. 

O público infantil é tão valioso, não apenas porque persuade a escolha de compra dos pais, mas porque são eles mesmos consumidores hoje e serão amanhã. Com cérebros ainda incapazes de distinguir informação de manipulação comercial e desprovidos de habilidade crítica ou autocontrole, as crianças são miras fáceis de empresas que conhecem o potencial bilionário da publicidade infantil no presente e no futuro.

De todos os prejuízos que a infância sofre com essa engenhosa máquina de encher os bolsos da indústria, o pior deles é o risco de vícios comportamentais, aos quais as crianças estão sendo submetidas. Não existe qualquer diferença entre os jogos de azar e a expectativa de “prêmio” que as crianças experienciam quando, por meio do dinheiro dos pais, tentam a sorte com “produtos premiados”. A gravidade dessa conjunção está no forte prazer que ela gera quando eventualmente a aposta dá certo. A sensação prazerosa é curta, imprevisível e intensa e passa a ser mais e mais desejada levando as crianças, e seus cérebros em formação, a buscar repetidamente por mais prazer.

O cenário pode ser ainda mais arriscado quando a criança não tem oportunidade de aprender a tolerar o desconforto. Crianças que são sempre e prontamente atendidas e que não vivenciam os incômodos tão necessários para qualquer aprendizado, reagem muito mal quando a vida lhes impõe respostas negativas. Como o desconforto lhes é desconhecido, tende a parecer insuportável causando, portanto, sofrimento intenso. E assim se fecha o perigoso ciclo dos vícios comportamentais aprendidos na infância. Para lidar com sofrimento intenso eles buscam o prazer intenso, cujo destino é se tornar cada vez mais frequente e mais acentuado, tudo isso piorado pela falta da contrapartida adulta que poderia modular isso tudo.  Vícios comportamentais não envolvem necessariamente substância e sim recompensas ligadas às vias dopaminérgicas cerebrais cujo gatilho é aprendido com as experiências da vida. Likes de redes sociais, jogos online, compras, jogos de azar, alimentos hiper saborosos e muitos outros comportamentos viciantes dos quais queremos proteger nossos filhos, são aprendidos desde a infância com apoio e validação dos pais e de toda a sociedade.

Num almoço de domingo, em um restaurante agradável na companhia da minha família, tive oportunidade de observar a mesa ao lado onde crianças abriam vertiginosamente dezenas de pacotes de figurinhas do álbum da Copa 2022. Não entendi bem a dinâmica e perguntei aos meus filhos. Afinal qual é o motivo de tanto desespero? Eles responderam: “eles devem estar procurando a figurinha dourada lendária mais rara de todas e que quase ninguém tem!!”. Bem parece que não encontraram e minutos depois já estavam mergulhados em seus Ipads com as figurinhas espalhadas pela mesa e os pacotes rasgados ali mesmo, ocupando o espaço que depois foi limpo e organizado pelo garçom que precisava de um canto para servir os pratos.

Foi nesse momento que eu soube que o álbum da Copa 2022 só poderá ser completado com figurinhas obtidas exclusivamente por meio da compra de produtos da Coca-Cola. Jogada de mestre do marketing. Ao invés de abrirem dezenas de pacotinhos, as crianças vão precisar rasgar dezenas de rótulos de garrafas de refrigerantes e claro consumir essas que são as bebidas mais prejudiciais à infância que já existiram.   

O pessoal “anti-bolha” a essa altura deve estar revoltado e esbravejando a clássica pergunta; “então devemos criar as crianças numa bolha?”.

Bem, se houvesse uma bolha onde as crianças pudesse aprender a viver enfrentando os perrengues da vida, sem superproteção, sem permissividade tóxica e sem serem expostas a comportamentos viciantes de longo prazo, a resposta seria SIM. Essa bolha seria nossa salvação. Mas sabemos que não há. A infância tem acontecido à revelia e, portanto, opto por concluir meu texto com a pergunta sensata de uma mãe no meu consultório. “Como podemos reduzir os danos do álbum da Copa?”

É justo lembrar que muitos de nós adultos, temos boas memórias afetivas do que vivenciamos em nossa própria infância fazendo a mesma coisa. Minhas sugestões foram: estimular o álbum coletivo, limitar o gasto com as figurinhas, estimular os encontros para trocas de figurinhas, vincular a compra de figurinhas ao mérito de ajudar um amigo a completar o álbum também ou a qualquer outro comportamento altruísta. Lembrar a criança que o objetivo não é abrir o pacote apenas, mas organizar o álbum e aprender com ele sobre o campeonato, países, bandeiras, hinos e jogadores.  Ah e claro! Praticar advocacy nos espaços reservados para as figurinhas da Coca-Cola criando mensagens contra a publicidade infantil e ensinar as crianças a perceberem o quanto este tipo de iniciativa é prejudicial a todos. A esperança é que, conhecendo as boas sensações e consequências que essa nova perspectiva traz, os futuros adultos consigam enxergar caminhos alternativos aos dos impostos pelo status quo do consumismo puro e simples.

Sob essa perspectiva não posso deixar de citar aqui uma grande brecha que esse momento traz para as crianças: a chance de saírem um pouco da frente das telas e conversar com seus pais. Reservar alguns minutos do dia para colar figurinhas em família e conversar sobre qualquer assunto nasça desse encontro, é uma oportunidade de reconexão entre pais e filhos que já se tornou uma necessidade urgente para todos. Contar aos filhos sobre as Copas do passado, nossas experiências e sentimentos envolvidos, é uma forma de revisitar nossa infância, mas dessa vez partindo de uma concepção transgeracional, ou seja, ensinando nossos filhos que as boas memórias são o verdadeiro valor desses raros momentos em que o coletivo importa. Ainda dá tempo de converter a “escola de apostas” numa escola de altruísmo, humanidade, solidariedade e empatia. Destacar para as crianças como é boa a sensação de ter mais pessoas conectadas por um objetivo comum. Imaginar juntos, como seríamos fortes se essa fé coletiva que os jogos da Copa trazem nos acompanhassem em mais situações de nossas vidas. Isso sim, serviria como uma poderosa semente de mudança.

Em suma nossos tempos pedem reconexão e quem conseguir encontrar esse prêmio dourado nessa Copa será o verdadeiro campeão.